terça-feira, 7 de junho de 2011

O roubo do tempo

Alcione Araújo*

Nos primórdios do capitalismo industrial - a relação homem-máquina ainda não tinha um vitorioso - não era pacifico que o trabalho rotineiro fosse um mal em si. Em meados do século XVIII, por exemplo, ganhou destaque o antagonismo dos pontos de vista de dois luminares da época: um francês e o outro inglês. Na sua Enciclopédia, publicada entre 1751 e 1772, Denis Diderot afirma que o trabalho rotineiro é como um método de aprendizagem por repetição - então usual. Já Adam Smith, no seu livro A riqueza das nações, publicado em 1776, afirma que: “A rotina embrutece o espírito. Pelo menos da forma organizada no capitalismo emergente, parecia negar qualquer relação entre o trabalho comum e o papel positivo da repetição na criação do produto.”Fabricar papel não é um trabalho pesado, acreditava Diderot. A rotina evolui à medida que os trabalhadores aprendem cada estágio do processo. Consegue-se ritmo no trabalho aprendendo a acelerar ou moderar a atividade, fazer variações, manejar materiais, desenvolver novas práticas. “Com a repetição e o ritmo, o trabalhador pode alcançar”, disse Diderot, “a unidade mental e manual” das tarefas.. Diderot apresenta provas visuais para ser mais convincente. Na fábrica, os meninos que cortam os trapos imundos são vistos trabalhando sem supervisão. Em outras salas, meninos, meninas e adultos trabalham lado a lado - Diderot devia supor que, ali, o leitor da Enciclopédia identificaria os ideais revolucionários deIgualdade e Fraternidade. Mas o que torna fascinantes as imagens são as caras dos trabalhadores. Por mais pesadas que sejam as tarefas a que se dedicam, as expressões serenas servem à convicção de Diderot de que, pelo trabalho, os seres humanos alcançam a paz consigo mesmos.
Adam Smith toma como exemplo uma fábrica de alfinetes. Estima que um fabricante de alfinetes, fazendo tudo sozinho, produziria, no máximo, algumas centenas de unidades ao dia. Se, no entanto, ele respeitasse a nova divisão de trabalho, a fabricação dividiria em tarefas as partes componentes. Cada trabalhador se incumbiria de apenas uma delas. Assim, ao fim de um dia, a produção ultrapassaria 16 mil unidades.
Assim como a fábrica de papel de Diderot, a de alfinetes de Smith é um lugar para trabalhar, não para viver. A separação de casa e trabalho é considerada a mais importante das modernas divisões do trabalho. Tanto a fábrica de Diderot como a de Smith funcionam de forma ordeira graças à rotina. Cada trabalhador executa apenas uma função. Para Adam Smith, a fábrica de alfinetes difere da de papel no modo humanamente desastroso de organizar o tempo de trabalho. Quando - onde quer que se estivesse - já se podia saber o tempo com precisão matemática, por que a extensão desse esquema de tempo se revelaria uma tragédia humana? Smith achava que o capitalismo de então equilibrava-se sobre esse abismo quando constatou que “os trabalham mais obtêm menos” - e pensava mais em termos humanos do que em salários. Um dos trechos mais sombrios de A riqueza das nações diz: “No progresso da divisão de trabalho, as tarefas da parcela menor dos que vivem do trabalho (...) passa a limitar-se a umas poucas operações muito simples, freqüentemente uma ou duas (...). O homem que passa a vida realizando umas poucas operações simples (...) em geral se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma criatura humana.”
É possível, mas improvável, que a liberdade humana possa florescer em meio a uma vida de labuta, pobreza e estupidez. A fim de tornar-se uma realidade, é preciso primeiro que se crie, para todos, as precondições para que se libertem, e saibam manter-se livres. Porém, é sensato pensar que, antes de criar uma sociedade verdadeiramente livre, é preciso criar riqueza, para poder distribuí-la, de acordo com as necessidades individuais livremente desenvolvidas. Antes de tudo, porém, é indispensável possibilitar que escravos e trabalhadores aprendam, saibam ver e pensar, para que possam entender o que está se passando, e decidir, com lucidez, o que fazer para mudar o estado das coisas.
A noção de que as atividades respeitáveis são as que dão lucro inverteu todos os valores, já naqueles tempos inaugurais. Por isso, a análise de uma sociedade, com critérios baseados em valores universais, defronta-se, logo de início, com a questão da objetividade histórica e, ao mesmo tempo, com a própria universalização dos valores. Dispensada uma argumentação tautológica, pode-se dizer que em qualquer tempo e lugar a vida humana vale a pena ser vivida, e que ela pode ser, ou deve ser, tornada digna de se viver. A afirmação, a priori, justifica qualquer esforço intelectual. Sua rejeição, de lógica aceitável, é uma recusa à tese. Pode-se dizer, também, que há sociedades em que existem possibilidades objetivas de melhorar a vida humana, assim como os meios e modos de fazê-lo. Entre as maneiras, possíveis e reais, de organizar e utilizar os meios materiais e intelectuais, em quantidade e qualidade, devem-se utilizar aqueles que assegurem a máxima satisfação e desenvolvimento, das necessidades e faculdades individuais, com um mínimo de labuta e miséria.
Avançando no tempo, para o século seguinte, a teoria marxista clássica ajudaria a analisar e compreender, como uma revolução política, a transição do capitalismo para o socialismo. O proletariado destruiria o aparato político do capitalismo, porém preservaria o aparato tecnológico, submetendo-o à justa socialização. A idéia seria manter a continuidade da revolução, pois a convicção - trata-se, afinal, de uma teoria científica - era de que a racionalidade tecnológica libertaria de restrições e destruições irracionais, mantendo e consumando a nova, e igualitária, sociedade. Na opinião de Karl Marx - um bom leitor de Adam Smith, que não aprendeu a louvar o comércio nem os comerciantes -, “a organização e a direção do aparato produtivo pelos produtores imediatos introduziria uma modificação qualitativa na continuidade técnica”. Ou seja, voltar-se para a produção, sim, porém, visando à satisfação “das necessidades individuais livremente desenvolvidas”.
Recuando três séculos, até o Renascimento, para melhor situar o mundo das idéias, registre-se que a primeira voz moderna do homo faber, ou seja, do homem como seu próprio criador, foi a do filósofo florentino Pico della Mirandola, na sua Oração sobre a dignidade do homem. Ali, ele afirma que “o homem é um animal de natureza diversa, multiforme e destrutível”. Com esse perfil amoldável, compete ao próprio homem “ter o que preferir, e ser o que quiser”. E, como se falasse aos pósteros, diz, como diria um pós-marxista: “Em vez de manter o mundo que herdamos, temos de moldá-lo de novo. Nossa dignidade depende de fazer isso.” Num desafio que não deixou de ecoar através dos tempos, brada: “É ignóbil.., não dar à luz nada de nós mesmos. Nosso trabalho no mundo é criar, e a maior criação é moldar a história de nossas próprias vidas.” Porém a Igreja, apesar do seu extraordinário poder, no céu e na terra, tanto na vida quanto na morte, não estava preparada para as idéias de Mirandola. Tampouco a sociedade. Nem mesmo três séculos depois. Era mudança demais, algo como um pré-Galileu, para a visão da Igreja, que se recusava a ver o homem como um ser histórico, que se transforma, que evolui, que pode mudar a sociedade e o mundo. O velho camponês, arraigado a um estoicismo de raízes profundas, sequer entendeu as palavras de Mirandola. Só entenderia se a disciplina e a obediência cegas fossem, elas também, mudadas. O cristão Mirandola se aventurou nas águas turvas da filosofia. Seu juízo afogou-se em mares nunca navegados. O visionário enlouqueceu. Santo Agostinho encerrou o assunto de Pico dela Mirandola falando a todos, em nome de todos, e em defesa dos dogmas: “Tira as mãos de tii mesmo; tenta construir-te a ti e construirás uma ruína.” O resto foi silêncio. Era muito cedo para verdades como a ciência, a história, as idéias e os homens livres.
No século XVIII, observado na condição cm que se encontra no seu universo, o homem parece estar de posse de certos poderes e conhecimentos que lhe permitiriam levar uma “vida boa”, isto é, uma vida, ao mdximo possível, independente de labuta, miséria e dor. Alcançar tal vida é conseguir a “melhor vida”, ou seja, viver de acordo com a essência da natureza e do homem. Na verdade, esta ainda é a avaliação do filósofo; é ele quem analisa a situação humana, submete a experiência à sua visão crítica - e nisto vai um julgamento de valor, a saber, o de que livrar-se da labuta é preferível à labuta, e uma vida inteligente é preferível a uma estúpida.
Desde os inícios civilização até a Revolução Industrial, um homem podia, grosso modo, produzir, após um árduo trabalho, pouco mais que o necessário para a própria subsistência e de sua família, muito embora sua mulher trabalhasse pelo menos tanto quanto ele e seus filhos acrescentassem ajuda, tão logo tivessem idade para isso.
Evidentemente, nas comunidades primitivas, os camponeses livres não se desfariam do magro excedente - de que dependiam os guerreiros e sacerdotes -,-, mas teriam produzido menos ou consumido mais. A princípio, a pura disposição - aliada a uma certa intimidação - os compelia a produzir e entregar o excedente. Aos poucos, porém, constatou-se que era possível induzir muitos deles a aceitarem uma ética de acordo com a qual era seu dever trabalhar duramente, embora parte desse trabalho se destinasse a manter outros, que se refestelavam no ócio. Jean-Jacques Rousseau foi o primeiro escritor moderno a compreender e escrever sobre a maneira como o funcionamento da política se baseia profundamente nesses rituais da vida diária, como a política depende do nós comunal.
Por falar em ócio, como se definiria o seu contrário? Como conceituar essa óbvia labuta? Afinal, o que é o trabalho? Pelo rigor do matemático e a ironia do filósofo, vale a resposta de Bertrand Russell: “O trabalho é de duas espécies: primeira, alterar a posição da matéria na superfície da terra ou quase nela, relativamente a outra matéria nas mesmas condições; segunda, dizer a outras pessoas que façam isso. A primeira espécie é desagradável e mal paga; a segunda é agradável e bem paga. A segunda espécie pode desdobrar-se ao infinito: há não apenas os que dão ordens, mas também aqueles que advertem quanto a que ordens devem ser dadas. Em geral, duas espécies opostas de advertência são dadas, ao mesmo tempo, por dois grupos organizados de homens; a isso se chama política. A capacitação exigida para essa espécie de trabalho não é o conhecimento dos assuntos sobre os quais se aconselha, mas o conhecimento da arte de falar e escrever persuasivamente, isto é, da arte de anunciar. Em todas as partes da Europa existe uma terceira classe de pessoas, mais respeitada que qualquer das classes de trabalhadores, que não existe nos Estados Unidos” - interrompa-se para que se diga que essa gente prolifera no Brasil também. “Trata-se de pessoas que, por possuírem terra, podem obrigar outras a pagarem pelo privilégio de se lhes conceder o direito de viver e de trabalhar. Esses proprietários de terra são ociosos (...) a sua ociosidade só é possível graças à trabalheira de outros; na verdade, seu desejo de cômoda ociosidade é, historicamente, a fonte de todo o evangelho do trabalho. A última coisa que eles um dia desejariam é que outros seguissem o seu exemplo.”
Embora desnecessário para a maioria, letrada e versada, talvez um curto parênteses aqui possa ser útil, aos de poucas letras e menos versos, para falarmos de um conceito que repetimos sempre e que, talvez por repetirmos tanto, não nos damos conta de que já esquecemos o que, a rigor, significa. Salvo pequenas exceções, a única idéia, hoje, no Ocidente, relacionando o capital e o trabalho.
A maioria dos autores define o capitalismo como o sistema em que os meios de produção - máquinas, ferramentas, matéria-prima e materiais auxiliares - são propriedade privada da pessoa, ou do grupo de pessoas, que investe o capital. Essa pessoa ou esse grupo, isto é, o capitalista, contrata o trabalho de terceiros para a produção de bens que, depois de vendidos, lhe permitem recuperar o investimento e ainda obter uma quantia excedente, que é o lucro. Obviamente, o objetivo final do capitalista é obter o lucro.
Superando a visão estreita do homem natural, que limitava a sua atividade econômica ao aprovisionamento dos bens suficientes para a satisfação de suas necessidades essenciais, o capitalista percebeu que a acumulação do capital é o fundamento básico da atividade econômica, que, daí em diante, passou a ser submetida à racionalidade da empresa.
Num momento posterior, o sociólogo Max Weber vincula a existência do capitalismo a três condições essenciais: à organização industrial racional, à separação da empresa da economia doméstica, e à implantação de uma contabilidade racional. Mas o capitalismo só se firmou como modo de produção dominante, após um longo processo de evolução. Assim, o sistema capitalista só teve início quando ocorreu a presença simultânea e permanente do capitalista e do trabalhador.. Através da organização industrial, o capitalista iniciou um processo ininterrupto de produção, geração de lucro e acumulação de capital.
Enquanto, na Inglaterra, Adam Smith e seus discípulos desenvolviam a ideologia do capitalismo, na França, pós-revolução de 1789 e pós-guerras napoleônicas, o Liberalismo econômico ajustava-se como uma luva aos interesses da Revolução Industrial: livre comércio, abolição de restrições às transações internacionais, câmbio livre e, por último, mas sem ironia, um mínimo minimorum de assistência social.
O liberalismo econômico tinha por fundamento a livre iniciativa individual, partindo do pressuposto de que a não-regulamentação das ações dos indivíduos na área econômica produziria melhores resultados para se atingir o objetivo, subentendido, então, como o progresso. Porém, mais do que uma política, o liberalismo firmou-se como uma filosofia de vida, baseada na crença no utilitarismo. As conquistas da ciência, os avanços da tecnologia e o êxito do empresário capitalista consolidavam a confiança no modelo e ajudavam a difundir a racionalidade, novidade agregada à organização empresarial. Como não podia deixar de ser, o êxito econômico da burguesia industrial logo se refletiu no poder político, que passou a ser exercido em seu benefício.
Assim como a mecanização diminuiu a quantidade da energia física consumida no trabalho, a automação adequou o processo industrial, a eficiência e a velocidade das operações ao capitalismo desenvolvido. A automação foi a catapulta para a modernização industrial. A produção passou a depender mais da tecnologia e da capacidade instalada do que do tempo e da quantidade de trabalho humano consumidos. Para os trabalhadores, a produção ininterrupta e em alta velocidade, utilizando processos automáticos, semi-automáticos e não automáticos numa mesma planta, exige concentração rigorosa durante longos períodos de tarefas repetitivas, extenuantes, entorpecedoras. No lugar da exaustão muscular, a tensão e o esforço mental - com seqüelas para toda a vida de trabalho.
Como disse, em outras palavras, Gilbert Simondon, pode-se chamar de autocrática a filosofia que usa técnicas e máquinas para obter potência. O fim é dominar as forças naturais através da submissão primordial. Porém a máquina é apenas um meio. Como um escravo, que pode fazer outros escravos. O que não impede a busca da liberdade humana. Reinar sobre máquinas, que podem submeter o mundo, ainda é reinar.
Sabe-se, através de Freud, que o princípio da realidade supera o princípio do prazer. O homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado e restringido. Mas garantido. Porém, qualquer satisfação possível exige algum trabalho, arranjos e iniciativas, mais ou menos penosos, para se obterem os meios de satisfazer as necessidades. Enquanto o trabalho dura - o que, praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo maduro -,, o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece. Como os instintos básicos lutam pelo predomínio do prazer e a ausência de dor, o princípio do prazer é incompatível com a realidade, e os instintos têm de sofrer uma contenção repressiva.
No entanto, o que se observa, do ponto de vista do comportamento, é que a sociedade industrial desenvolvida é mais liberal em relação à sexualidade humana. Liberalidade marcante, um valor cultural, de influência variável nos costumes. Sem deixar de ser um instrumento de trabalho, concede-se ao corpo a exibição de sua sensualidade, e até de características sexuais, ao mundo da produção cotidiana e nas relações de trabalho. Esta é uma das mais originais concessões da sociedade industrial - tornada possível pelo aumento da higienização, redução do trabalho físico pesado, acesso a roupas atraentes de baixo custo, cultivo da beleza e dos cosméticos, resposta aos estímulos publicitários etc. Escriturárias e balconistas sensuais, o chefe de seção, o superintendente atraentes e viris tornaram-se parte do processo de sedução comercial - em alguns casos, quase mercadorias-,-, além da “posse” de amantes apropriadas - antes uma prerrogativa de reis, príncipes, lordes ou, no mínimo, “bens de vida” -,, facilita a carreira até mesmo de empregados subalternos. A arquitetura de lojas e escritórios inclui amplas janelas de vidro, mantendo os funcionários em permanente exibição. Abandonaram-se os balcões altos e as divisórias internas. Ficou ultrapassada a arquitetura indevassável. Em edifícios de apartamentos e residências suburbanas rompeu-se a barreira que separava a existência individual da existência pública. Expõem-se mais as qualidades atraentes de outras esposas e outros maridos. Essa socialização, aparentemente contraditória, é complementar à “des-erotização” do ambiente. O sexo integrou-se no trabalho e nas relações públicas, tornando-se mais acessível. O progresso técnico e a vida mais confortável permitem a inclusão sistemática de elementos libidinais no campo da produção e troca de mercadorias. Mas, independente do controle da libido - do quanto possa servir à manutenção do status quo -, as novas formas de relação agradam à maioria dos indivíduos.
A repercussão social da automação, ao se transformar num processo de produção independente, atinge em cheio a força de trabalho e revolve camadas silenciosas e acomodadas de toda a sociedade. A dinâmica do desenvolvimento tecnológico imbrica-se com os conteúdos políticos. O lugar da tecnologia torna-se também o lugar da servidão. O potencial libertador da técnica revela-se, contraditoriamente, o grilhão daquela libertação, a instrumentalização do homem, o que Chaplin ridicularizou em Tempos modernos.
Países há que se lançam às escuras no processo de industrialização, com uma população sem treinamento nas técnicas de produtividade, eficiência e racionalidade tecnológica e com a maioria da população ainda não habilitada como força de trabalho, divorciada dos meios de produção. O caminho das pedras esconde-se sob as águas.
Nos processos avançados, inteiramente automatizados, a produção em alta escala não apenas reduz os custos como passa prescindir do homem, exceto nas raras funções de controle, supervisão e gerência. A tecnologia, porém, reduziu ao mínimo o tempo do trabalho humano, no qual se apóia a riqueza social. Distribui-se pouco uma renda que diminui. A ameaça é tecnicamente concreta e economicamente irreversível: se o trabalho humano não produz bens diretamente, o tempo de trabalho deixa de ser a medida do valor de troca. A antiga forma de produção, apoiada na mão-de-obra, declina. O esbulho da força de trabalho humano, levado à perfeição, destrói a forma espoliada pelo rompimento do cordão umbilical que unia o indivíduo à máquina - união através da qual, paradoxalmente, o seu próprio trabalho o escravizava. Na fase atual do capitalismo desenvolvido, o trabalho organizado se opõe à automatização sem emprego compensador. É possível - mas outra vez improvável - que essa oposição inclua medidas que possam enfraquecer a posição competitiva do capital nacional e internacional. A depressão decorrente terá longo alcance e poderá acirrar o conflito de classe.
É justamente esse quadro, de automatização/informatização completa, que poderá propiciar o surgimento de uma alternativa que adiante se proporá. Vislumbrado o tempo livre, descortina-se no horizonte do homem uma nova dimensão privada e social, de tal importância que, uma vez assumida, poderá alcançar a transcendência histórica do limiar de uma nova civilização.
Mas, retomando, nascemos e morremos racional e produtivamente. Sabemos que a destruição é o preço do progresso, como a morte é o preço da vida, que a renúncia e a labuta são os requisitos para a satisfação e o prazer, que os negócios devem prosseguir e que as alternativas são utópicas. Essa ideologia pertence ao aparato social estabelecido, é um requisito para o seu funcionamento contínuo e perto da sua racionalidade. Contudo, o aparato derrota o seu próprio objetivo, se este é criar uma existência humana com base numa natureza humanizada. E se esse não é o seu propósito, sua racionalidade se torna ainda mais suspeita.
Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da “não-liberdade” do homem e demonstra a impossibilidade técnica de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida - uma frontal negação de Pico della Mirandola. Isso porque essa “não-liberdade” não parece irracional nem política, mas, antes, uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades de vida e aumenta a produtividade do trabalho. A produtividade tecnológica, assim, protege, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária.
Depois de ser a indústria o principal motor de progresso - com sofisticação da automação, aplicação da cibernética, produção em série e em alta escala -, o modelo começou a revelar fissuras. Acende-se a luz amarela. Se relacionarmos as causas do alerta com a situação econômica da sociedade, nos defrontaremos com uma sociedade industrial desenvolvida, que se tornou mais rica, maior e melhor ao perpetuar o perigo. O sistema de defesa e proteção facilita a vida de um número maior de criaturas e permite ampliar e aprofundar o domínio do homem sobre a natureza. Porém, anunciado o perigo, começa-se a questionar a velocidade e o tipo de progresso. O crescimento descontrolado da população, os efeitos da poluição generalizada e, em alguns países, o temor de esgotamento dos recursos naturais instalam a permanente ameaça de catástrofe. O que seriam necessidades políticas dessa sociedade tornam-se aspirações individuais. As soluções privadas pervertem as necessidades públicas. Se uns realizam negócios, outros põem em dúvida o dogma de que a produção baseada no principio do crescimento permanente conduzirá, de forma automática, a uma sociedade melhor. A aparência pode até ser boa, mas essa sociedade é, na sua essência, irracional: sua produtividade inibe o livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; seu crescimento depende da repressão às possibilidades reais de amenizar a luta pela existência - individual, nacional, internacional -, pois, apesar da indústria ter se convertido no principal fator de enriquecimento, os seus benefícios atingem apenas uma pequena parte do universo.
A presença da miséria absoluta face à riqueza sem precedentes, a rendição do pensamento, das esperanças de mudanças, e ao temor das decisões dos poderosos, a simultaneidade de produção e destruição crescentes, a iminência de um aniquilamento; é a mais imparcial acusação - ainda que não seja a “razão de ser” desta sociedade, mas apenas um subproduto, a sua racionalidade arrasadora, que impele a eficiência e o crescimento, é, em si, irracional.
Para se livrar da histórica maldição acumulada na expressão sistema capitalista,criaram-se eufemismos, como sistema de livre empresa ou empresa privada. Hoje se usaflexibilidade para a versão mais moderna e abrangente do mesmo conceito.
Os empresários e a imprensa insistem que a globalização e o uso intensivo de novas tecnologias seriam as características distintivas do novo capitalismo, verdade, mas essa é apenas sua elaborada e asséptica imagem pública. Não revela a dimensão mais velada da mudança: as novas formas de organizar o tempo de trabalho e de controlar a produção. Segundo seus defensores, o capitalismo flexível é muito mais que uma mera variação sobre um velho tema. Além da modernização institucional, cresce a ênfase na flexibilidade,eliminam-se camadas da burocracia, a empresa torna-se mais plana e flexível, livra-se dos vícios da rotina e a organização passa a ser tratada como redes. Pede-se aos trabalhadores agilidade, abertura a mudanças de curto prazo, disposição para assumir riscos constantes, informalidade em relação a conquistas trabalhistas e independência em relação à morosidade das leis. Promoções e demissões passam a se basear em regras nítidas e fixas, e as tarefas do trabalho não são claramente definidas; a rede incumbe-se de definir, redefinir, compor e decompor permanentemente sua estrutura. O capitalismo flexível está mudando o próprio conceito de trabalho.
Não há longo prazo - esse lema é o sinal mais ostensivo dessa mudança. O mercado tornou-se extraordinariamente dinâmico para permitir que se façam as coisas do mesmo jeito, ano após ano, ou que se faça a mesma coisa. O mercado flutua perigosamente, deslocado pelo consumidor, como nunca antes na história. Numa economia em que informações sobre concorrentes, estratégias de marketing, conceitos comerciais, projetos de produtos, equipamento de capital e todo tipo de inside information têm “utilidade” curta. O que se entendia por lealdade institucional e sigilo profissional tornou-se armadilha. Nocapitalismo flexível, é a dimensão encurtada do tempo, a agilidade dos mercados globais, e a competição do livre comércio que mais afetam a vida emocional das pessoas envolvidas.
A ética do capitalismo flexível concentra-se no trabalho em equipe, ou seja, é a ética de quem participa ativamente de uma economia flexível. Apesar do viés psicológico que permeia a chamada administração moderna, o trabalho em equipe valoriza, acima de tudo, a capacidade de adaptação às circunstâncias. Para a empresa o modelo é seguro: a eventual demissão não ameaça a continuidade. Dos participantes exige-se o que chamam de “aptidões delicadas”: ser bom ouvinte, atencioso, sensível e cooperativo. Mas a demanda real é de audácia, competitividade, eficiência, decisão rápida, agilidade. O ethos do trabalho, no escritório ou na fábrica, permanece na superfície da experiência. O trabalho de equipe é a prática, em grupo, da superficialidade degradante. Propensa a manter-se com os mesmos membros, tende à superficialidade partilhada, evitando questões difíceis, decisivas e pessoais. A resultante das discussões aponta sempre para a sensatez, sem riscos nem desafios, na média/medíocre. Como o trabalho em equipe é também o modelo vigente da formação, o habitual é um profissional dependente, de baixa autonomia e baixa capacidade de decisão. Essas formas de trabalho em equipe são em muitos aspectos o oposto da ética do trabalho como a concebia Max Weber. Ética de grupo em oposição à ética do indivíduo, o trabalho em equipe enfatiza mais a responsividade mútua que a confirmação pessoal. O tempo das equipes é mais flexível e voltado para tarefas específicas de curto prazo do que para a soma de décadas caracterizadas pela contenção e espera.
Não há longo prazo é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo. Como buscar metas de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como pode um indivíduo construir uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? A nova economia alimenta, ao contrário, a experiência de estar à deriva, de cidade em cidade, de emprego em emprego, de cargo em cargo. O capitalismo de curto prazo corrói o caráter do empregado, sobretudo aquelas qualidades que unem umas pessoas às outras, e dão a cada uma delas um senso seguro de identidade. Imaginava-se que o capitalismo tardio conseguira uma espécie de consumação final; havia liberdade de mercado, menos controle do governo, o “sistema” ainda entrava na experiência cotidiana das pessoas, como sempre fizera, com sucesso e fracasso, dominação e submissão, alienação e consumo. As questões de cultura e caráter encaixavam-se nessas categorias conhecidas. As condições de tempo no novo capitalismo criaram um conflito entre caráter e experiência. A experiência do tempo intermitente ameaçando a capacidade de as pessoas transformarem seus caracteres em narrativas sustentadas. Talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável.
Não há longo prazo desorienta ações a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e separa a vontade, esquizofrenicamente, do gesto.
As empresas flexíveis estão experimentando inúmeros horários de trabalho do chamado flexitempo. Em vez de turnos fixos, o dia de trabalho é um mosaico de pessoas trabalhando em horários diferentes e individualizados. Esse mosaico parece distante da rigorosa organização do trabalho na fábrica de alfinetes de Adam Smith; na verdade, dá a impressão de liberação do tempo de trabalho - como se a organização moderna combatesse a rotina padronizada. Mas a realidade do flexitempo é bem diferente. A nova administração do tempo surgiu com a recente corrida de mulheres ao mundo do trabalho - nos dez últimos anos números significativos de mulheres de classe média entraram em filas de emprego nos Estados Unidos, Europa e Japão, permaneceram como força de trabalho depois de ter filhos e juntaram-se às mulheres empregadas nos níveis inferiores, de serviços e manufatura.
Em 1960, cerca de 30% das americanas eram parte da força de trabalho assalariada, e 70%, não. Em 1990, quase 60% estavam na força de trabalho assalariado, e só 40%, não. Nas economias desenvolvidas, no mesmo ano de 1990, quase 50% da força de trabalho, profissional liberal e técnica era de mulheres - a maioria empregada em tempo integral. A necessidade, assim como o desejo pessoal, motivou esse trabalho, além de sua função econômica: uma família com padrão de vida de classe média, em geral, exige hoje dois assalariados adultos. Essas trabalhadoras precisavam, porém, de horas de trabalho mais flexíveis; em todas as classes, muitas delas são empregadas de meio período e mães em período integral. A entrada de mais mulheres da classe média na força de trabalho ajudou a inovar o planejamento flexível do tempo integral e de meio período. A essa altura, tais mudanças já cruzaram a barreira dos gêneros, de modo que os homens também já trabalham em horários elásticos.
O flexitempo hoje atua de várias maneiras. A mais simples, usada por cerca de 70% das empresas americanas, é o trabalhador dar uma semana integral de trabalho, discriminando, porém, quando, durante o dia, estará na fábrica ou no escritório. No extremo oposto, cerca de 20% das empresas permitem horários de trabalho “comprimidos” - quando o empregado faz, por exemplo, o trabalho de toda uma semana em quatro dias.
Trabalhar em casa é hoje uma opção em cerca de 16% das empresas, sobretudo para trabalhadores em serviços, vendas e técnicos, o que se tornou possível em grande parte devido ao desenvolvimento de intra-redes de comunicação.
Embora sugira maior liberdade do que a do empregado atrelado à rotina da fábrica de alfinetes de Adam Smith, hoje o trabalhador está, ao contrário, envolvido numa nova e sofisticada trama de controle. O flexitempo não é como o calendário de folgas, em que os trabalhadores sabem o que esperar. Tampouco é comparável a um simples total de horas semanais de trabalho que uma empresa estabelece para seus empregados de nível inferior. Se o flexitempo permite que o empregado trabalhe afastado da empresa, em contrapartida o põe sob o controle íntimo da instituição. O mais flexível flexitempo é o do trabalho fisicamente descentralizado.
Trabalhar em casa, por exemplo, é o último patamar do novo modelo. E é o que mais provoca ansiedade na empresa; que teme perder o controle sobre os trabalhadores ausentes. Paira a desconfiança de que os que trabalham em casa abusam da liberdade. Por isso criou-se um grande número de maneiras de controlar o trabalho dos ausentes. A aparência de nova liberdade pode ser enganosa. O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado da jaula de ferro de Max Weber. Exige-se que as pessoas telefonem regularmente para o escritório ou se usem controles de infra-rede para monitorar o trabalhador ausente; e os e-mails são abertos pelos supervisores. A essa altura, estudos já sugerem que o controle e a supervisão são muitas vezes maiores para os que trabalham fora da sede. Os trabalhadores, assim, trocam uma forma de submissão ao poder de corpo presente por outra, eletrônica.
As aptidões - intelectuais e materiais - da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca, o que significa que o alcance da dominação da sociedade sobre o individuo é incomensuravelmente maior do que nunca. O tempo daflexibilidade é o tempo de um novo poder. Rédeas soltas e controle rígido.
Pode-se dizer que não há novidade, que o capitalismo foi sempre assim. Mas não do mesmo jeito. Como se tem visto aqui, o capitalismo evolui. Ou melhor, adapta-se, camaleônico. Mexe-se para ficar do mesmo jeito. A indiferença do antigo capitalismo, ligado à classe, era cruamente material; a indiferença que se irradia do capitalismo flexível é mais pessoal, porque o próprio sistema é menos cruamente esboçado, menos legível na forma. Ou tudo não passa de aparência?
Hoje, mais pessoas perdem do que ganham mudando de cargo dentro da empresa; 34% perdem significativamente, 24% ganham significativamente. Uma geração atrás, os números eram mais ou menos o contrário; melhorava-se um pouco mais mudando-se para uma nova empresa do que com a promoção interna. Mesmo assim, a taxa de mudança de emprego entre empresas era mais baixa que hoje; fatores como segurança do emprego e compromisso com a empresa mantinham as pessoas em seus lugares.
Com a fúria de um tornado, a internacionalização de capitais e produtos desloca-se à velocidade da luz por todos os cantos do planeta. Seus defensores advertem para a inutilidade de tentar detê-la. A insegurança quanto ao futuro se confunde com as idéias de progresso e modernidade, oportunisticamente associadas à globalização. Instala-se a desconfiança e o medo. Em março de 1977 - há 22 anos, portanto na fase infantil do processo - o Instituto de Sondagem CSA perguntou aos franceses: “Quando você pensa no sistema econômico, tal como funciona atualmente, o que você sente? 17% dos franceses responderam que sentiam “Esperança”, e 8%, “Indiferença”; 41% disseram que sentiam “Medo”, e 31%, “Revolta”. Portanto, a grande maioria - 72% - oscilava entre o Medo e a Revolta, porcentagem altíssima para um mesmo sentimento manifesto sob formas distintas. Compreende-se quando se verifica que o anonimato, a rapidez e o oportunismo são a nova máscara da eficiência e da racionalidade dos capitais especulativos. Voláteis, eles desaparecem instantaneamente aqui, para emergir onde haja mais vantagens. Os governos, coagidos a eliminar as barreiras de proteção e os mecanismos de controle de suas economias, rendem-se, impotentes, postando-se como espectadores cínicos e, resignados, sucumbem, de braços cruzados, à avassaladora rapinagem. Especulação é o novo nome para investimento. E especulador, para investidor. Atropelam regimes, governos e políticos, que tombam num silêncio submisso. O capital é o exclusivo dono do mundo e o capitalismo ultraliberal, seu pensamento, atualmente hegemônico.
Causa ou conseqüência dessa situação - essa dialetização ainda está em aberto -, acrescente-se ao quadro a diluição de ideologias, religiões, ações coletivas - militantes, voluntárias, sindicais, políticas, cívicas - de movimentos sociais, de classe e, até mesmo, de cidadania. A união, oriunda do espírito associativo e de grupos capazes de ações coletivas, praticamente desapareceu. Assim como o sentimento de nação, o ceticismo em relação ao papel do Estado - em qualquer dos três poderes -, em especial à possibilidade de se alterar o quadro social, de se cumprir a lei e fazer justiça e, principalmente, de se alcançar uma democracia social. Confirma-se a insólita afirmação de Margaret Thatcher, verdadeira apologia do individualismo neoliberal: “A sociedade não existe.” Resta, pois, ao cidadão acreditar solitariamente apenas em suas forças, e em si mesmo. A situação convence-o de que o que deveria ter feito era tomar a sua vida em suas próprias mãos. E não como cidadão, mas como indivíduo: destituído de poderes, de direitos, de segurança e, na grande maioria, de bens e de perspectivas para o futuro. Se não bastasse, de uns tempos para cá, destituído até mesmo do emprego. E se, por sorte ou circunstâncias, ainda o preserva, está ameaçado de perdê-lo.
O fracasso não é mais o desfecho previsível apenas dos sonhos dos muito pobres ou miseráveis. Tornou-se praticamente um fato regular na vida da classe média. A expressão decrescente das elites torna mais fugidia a sua realização. O mercado em que o vencedor leva tudo é uma estrutura competitiva que predispõe ao fracasso grande número de pessoas preparadas. Enxugamentos e reengenharias impõem às pessoas da classe média tragédias imprevisíveis que, nos primeiros tempos do capitalismo, se limitavam às classes trabalhadoras. O temor de faltar aos compromissos com a própria família impõe esforços de acomodação no trabalho, comportamentos flexíveis e adaptação. A submissão é sutil e constrangedora, mas não menos forte.
Todo o atual sistema econômico transpira insegurança. Ainda mais ao amoldar as instituições a um modelo de reengenharia no qual as pessoas são tratadas como descartáveis. Instala-se um mundo de incerteza, desproteção e medo. Os indivíduos são açoitados de um lado para o outro, sem rumo nem âncora, como uma rolha num mar tempestuoso. Incluindo-se as famílias e os dependentes, quantas vidas já foram arruinadas? Quantas ainda serão? Quem responderá por isso? Arruína-se o significado do mais sagrado tabu do mundo ocidental, instituto fundante da civilização: o trabalho.
E o pior é que não estamos sob uma tempestade. Não se trata de uma crise passageira, que os ventos deslocarão para adiante. A rigor, não estamos sequer em crise - um desempregado hoje não é mais vítima de uma marginalização temporária, que atinge apenas alguns setores -, mas num tumultuado período de mutação e adaptação da própria realidade. E o fenômeno é complexo, destrutivo e genocida. Porém, o que verdadeiramente importa é a destinação dos corpos e almas individuais, diluídos, sem nomes nem histórias pessoais nos índices de frias estatísticas. A esses seres humanos restam as perdas afetivas, o direito à miséria, a perda de um teto, a perda da respeitabilidade social e até mesmo a perda da auto-estima. A reprovação geral os espreita. São induzidos a se considerar incapazes, indignos e, sobretudo, responsáveis pela situação que, eles próprios, julgam degradante. Resta-lhe o mais humilhante dos sentimentos: a própria vergonha, que fragiliza, amedronta e paralisa. Não é, pois, o desemprego que é, em si, nefasto, mas toda a fieira de sofrimentos que ele causa - e não apenas ao desempregado, mas a toda a sua família. E o sistema previdenciário, em vez de apoiar, trata o dependente do Estado mais como um parasita social do que um desvalido.
Um número recente da California Management Review tentou explicar os aspectos positivos da juventude e os negativos da idade nas organizações flexíveis. Concluiu que os trabalhadores mais velhos têm esquemas mentais inflexíveis, são avessos ao risco, não têm a energia física necessária para as exigências do trabalho. Com a imagem de “madeira morta” resume essa conclusão. Um publicitário disse à socióloga Katherine Newman: “Se você está na publicidade, está morto depois dos trinta. A idade mata.” Um executivo de Wall Street disse a ela: “Os patrões acham que [se você tem mais de quarenta anos] não pode mais pensar. Depois dos cinqüenta [eles acham], você está liquidado.” Flexibilidade equivale a juventude, rigidez; a idade.(...) À medida que se acumula, a experiência da pessoa vai perdendo o valor.
Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, entre 1970 e 1990, o número de homens empregados, entre 55 e 64 anos, caiu de quase 80% para 65%. Na França, os empregados em fins da meia-idade caíram de quase 75% para cerca de 40%; na Alemanha, de quase 80% para cerca de 50%. Os jovens estão entrando um pouco mais tarde no mercado de trabalho - a educação passou a tomar-lhes mais tempo. O sociólogo Manuel Castells prevê que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental “a vida de trabalho de fato pode ser encurtada para cerca de trinta anos (de 25 a 54), de um período de vida real em torno de 70-80 anos”. A vida produtiva será menos da metade da vida biológica. Trabalhadores idosos poderão usufruir o merecido tempo de ócio bem antes de estarem com a capacidade física ou mental prejudicada. Pessoas na faixa entre 50 e 55 anos já estão se aposentando como conseqüência da compressão da vida de trabalho.
Estima-se que em 2010, das pessoas com 25 anos nos Estados Unidos, 41% terão um grau universitário de quatro anos. Prevê-se para a Europa Ocidental e Grã-Bretanha porcentagens 10% mais baixas. No entanto, só 20% dos empregos da força de trabalho americana exigem diploma universitário. E a porcentagem desses empregos de alta qualificação sobe muito lentamente. O excesso de qualificação é um sinal da polarização peculiar ao novo regime. Portanto, as perspectivas não são alentadoras nem mesmo para os que conseguirem a proeza de se formar. Hoje, a economia globalizada assumiu também a terrível função de despertar esse medo ancestral. Só que, agora, os americanos ameaçados não são apenas os não qualificados, mas também os das classes médias e os profissionais liberais. Todos colhidos no fluxo do mercado global de mão-de-obra. Americanos!
Em Bonn, num Congresso de 1972, admitiu-se que os habitantes dos países industriais dispõem de 25 vezes mais bens materiais do que a média dos habitantes dos países em desenvolvimento. Hoje, oito anos depois, a diferença cresceu brutalmente. A busca do equilíbrio entre progresso e marginalidade coloca a qualidade de vida no centro das atenções, constituindo tais idéias pontos de debate na Comunidade Comum Européia, cujos países desfrutam de alto desenvolvimento industrial. Na República Federal da Alemanha, em 1997, a indústria participou com 54% na formação do Produto Nacional Bruto (PNB), e na França, com 47%. É a quintessência da qualidade de vida da proposta que se apresentará aqui. Deveria, portanto, estar na agenda da, agora, União Européia.
No cerco fechado pela globalização neoliberal, os países ricos enriquecem mais a cada dia, e os países pobres, a cada dia, empobrecem mais. Em comum entre ricos e pobres, a crescente apreensão - em muitos casos, o desespero - dos trabalhadores para conseguir um novo emprego ou manter o antigo, se ainda o tiver, mesmo sabendo que é menor o salário da nova vaga, e não haverá reajustes para a vaga antiga. Se não bastasse, a crueldade do quadro inclui ainda a exportação de emprego pelos países importadores de produtos - exporta-se o que já não se tem! Cresce o risco quanto à subsistência da família, a incerteza quanto ao estudo dos filhos, a ameaça de violência urbana.
Todo o tempo, de toda a família, é consumido, direta ou indiretamente, pelo trabalho - doméstico, informal ou institucional. Seja trabalhando as sagradas oito horas diárias, seja preparando-se para ir trabalhar, seja no transporte para o trabalho. Seja ansioso com as perspectivas no trabalho, seja apreensivo com a avaliação do desempenho no trabalho. Seja submetendo a rotina doméstica aos horários do trabalho, seja dedicando o escasso tempo livre a cursos de aperfeiçoamento profissional. Cada dia é um corre-corre infindável, um lufa-lufa sem trégua. Sair de casa antes do amanhecer e voltar depois que a noite desceu, esmagado em trens lotados, equilibrando-se nas curvas cm alta velocidade num ônibus de horário fixo, ou preso num claustrofóbico engarrafamento. Não há tempo nem dinheiro para o lazer, nem para a vida cultural, às vezes, nem mesmo para as práticas religiosas. Divertir-se é sentar-se em frente à televisão; e nunca após as dez da noite. Cada dia, cada semana, começa e termina com o trabalho. Exaustão, estresse, desânimo, desespero - sem solução à vista. O fim de semana serve para recuperar as forças para a semana seguinte. Que futuro os estudos podem oferecer aos filhos? Melhor abandonar a escola para trabalhar? Pode-se chamar a isso de vida? É para isso que viemos ao mundo?
Chegou o momento de se discutirem os rumos que os donos do mundo escolheram para a humanidade - donos do mundo, sim: o poder está globalizado. Para onde os donos do mundo pretendem arrastar as pessoas, depois que tomaram tudo que elas conseguiram em lutas históricas - direitos, benefícios, proteção etc.? Se não bastasse, os perdedores deram-se conta da proeza que os donos do mundo vinham fazendo discretamente. Como nunca tiveram bens, eles estavam, como sempre, no osso, uma vez que até a força de trabalho já haviam vendido. Mas ainda não era o fim. À falta do que os enriquecesse ainda mais, os donos do mundo vinham se apossando de algo que lhes aumentava o poder: roubavam o tempo dos demais, de quase todos. Aos poucos, subtraíram o sagrado tempo de contemplação. Hoje, os perdedores já não têm mais cabeça para devanear, nem sensibilidade para olhar o céu, nem coração para se emocionar diante de uma obra de arte, não têm mais alegria para brincar com as crianças, nem delicadeza para amar a mulher. Sem o tempo da contemplação, eles perdem a característica essencial de um homem, perdem a humanidade. Deviam reagir, mas hesitam, resignam-se. Ninguém se movimenta para lutar - com a proustiana licença - Em busca do tempo perdido.
O pecado do capital aqui é o roubo, claro. Mas é um roubo movido pela ganância como é típico do capital. Ignora-se qual dos crimes tem pena mais leve. Estaria mais perto do justo se fosse uma condenação com a mais pesada das penas de que se tem noticia, ou que se possa imaginar. Afinal, o que resta do homem, sem a sua humanidade, sem o seu tempo de contemplação?
Para conter a perversão planetária em curso, evitar o cruel triunfo da ganância e estancar o genocídio do humanismo, as próximas linhas esboçam uma idéia. Claro, alguns acharão ingênua, infantil, visionária, utópica, insana, enfim. Porém, sem a gravidade sisuda de capitalistas, economistas, sociólogos, políticos, militares, religiosos e outros salvadores da humanidade, foi escrita com a alegria dos que, apesar de tudo, insistem em acreditar no sonho; que, como escritores, acreditam na imaginação; que, como homens, ainda não perderam completamente a esperança, ou não teria escrito essas páginas. À idéia, com seus antecedentes.
Bertrand Russell publicou em Londres, em 1932, uma coletânea de artigos sob o títuloIn Praise of ldleness. Em 1977, o professor Nathanael C. Caixeiro publicou sua tradução,Elogio do lazer, pela Zahar Editores. Só um insuspeitado dom profético levaria alguém a tratar desse tema no momento em que a Europa assistia à ascensão do nazismo, já com 107 deputados no Reichstag, embora Hitler tenha sido derrotado pelo marechal Hindemburg; os americanos seguiam Roosevelt no seu New Deal e, no Brasil, Getúlio Vargas abafava a rebelião dos paulistas - e, sete anos depois, estourava a Segunda Guerra Mundial.
Escrito com seriedade e leveza, e embalado pela inteligência fulgurante e o indefectível humor britânico, o atrevido e irônico ensaio, de apenas quinze páginas, que deu nome ao volume, foi a inspiração para essas páginas.
“Acho que já se trabalhou em demasia no mundo”, começa afirmando o filósofo e matemático inglês, o que poderia ser um suspirado desfecho para tudo o que foi dito até aqui. E do alto da autoridade que 98 anos de vida e 30 de morto conferiram-lhe, profetiza, em 1932, um diagnóstico perfeito para 1999: “A crença de que o trabalho é virtuoso é imensamente nociva, e que o necessário a ser pregado nos países industriais modernos é muito diferente de toda a pregação passada.” Por suas idéias e palavras que, adaptadas e contextualizadas, faço minhas, Bertrand Russell está aqui. A uma visionária sugestão, esta homenagem como retribuição.
Embora a consciência tenha-lhe controlado as ações, suas idéias passaram por uma revolução. Russell assegura que para haver prosperidade é preciso uma redução “organizada” do trabalho. O Ocidente silenciou diante da peroração sobre a “excelência do trabalho”, sem perceber que o elogio à canseira era fruto de um sistema da era pré-industrial, distante, portanto, das demandas do mundo de hoje. A tecnologia possibilitou que o lazer, dentro de certos limites, não seja só para privilegiados, mas um direito de toda a comunidade. “A moralidade do trabalho”, ele diz, “é a moralidade de escravos. E o mundo moderno não precisa de escravidão.”
Historicamente, a idéia de dever, como obrigação, tem sido manipulada pelos que querem induzir os outros a servi-los. Os governantes disfarçam, fazendo crer que os interesses são os mesmos. Às vezes isso pode ser verdade: os senhores de escravos, na Grécia antiga, usavam parte do tempo de lazer em atividades que contribuíram para a civilização, o que teria sido impossível fosse o sistema econômico equânime. A civilização deve ao lazer de poucos e ao esforço de muitos. Mas a canseira compensou; não porque trabalhar seja bom, mas porque o lazer compensa. Todos necessitam e merecem. Pode-se distribuí-lo, de forma democrática e equânime. A tecnologia moderna reduziu o trabalho ao necessário à subsistência, indistinta, dos seres humanos.
Ficou patente durante a guerra. Os convocados para as Forças Armadas, homens e mulheres, foram retirados das ocupações produtivas. No entanto, o bem-estar material de trabalhadores não-qualificados, dos países aliados, ficou mais alto do que antes. A guerra provou, de forma cabal, que estando a produção organizada em bases científicas, podem-se manter as populações em bom nível de bem-estar, com apenas uma parte da capacidade total de trabalho. Se ao final da guerra, a organização criada para liberar homens às trincheiras e às fábricas de material bélico fosse mantida, tudo correria bem para todos, com apenas quatro horas de trabalho diário de cada um. Em vez disso, voltou o antigo caos; aqueles cujo trabalho foi exigido foram obrigados a trabalhar longas horas, e os demais, abandonados com fome e desempregados.
Por quê?, indaga Bertrand Russell. Porque o trabalho é um dever? Por que um homem não deve ganhar em proporção ao que produziu, mas na proporção da sua virtude, como se possa observar por sua diligência. É a moral do estado escravista, aplicada numa situação radicalmente diferente daquela em que surgiu. Não surpreende o resultado catastrófico.
Um exemplo. Digamos que um certo número de pessoas esteja empregado na fabricação de alfinetes. Elas fazem tantos alfinetes quantos o mundo necessita, numa jornada de, digamos, oito horas diárias. Alguém inventa um meio de duplicar a produção com o mesmo número de pessoas. Mas o mundo não precisa de duas vezes mais alfinetes! Os alfinetes são tão baratos, que seria impossível comprá-los a preço mais vil. Num mundo racional, todos os que fabricassem alfinetes passariam a trabalhar quatro horas por dia, em vez de oito. E tudo correria como antes. Mas no mundo de hoje isso seria considerado uma desmoralização. Então, os homens continuam trabalhando oito horas por dia, produzem alfinetes em excesso, vários industriais vão à falência, a metade dos empregados vai para o olho da rua. No final, há tanto lazer quanto no plano anterior, mas metade dos homens está ociosa, e a outra metade continua sobrecarregada. Desse modo, garante-se que o inevitável lazer causaria miséria a todos em vez de ser uma fonte universal de felicidade. Pode-se imaginar coisa mais louca?
Quando Russell sugere que a jornada de trabalho seja reduzida para quatro horas, ele não está insinuando que o tempo restante seja desperdiçado em frivolidade. Ao contrário, ele admite que o uso inteligente do tempo de lazer é fruto da educação e da civilização. É essencial, pois, que ao adotar a jornada de quatro horas, a educação seja mais eficiente do que é hoje. E tenha como objetivo, em parte, desenvolver o prazer que leve as pessoas a desfrutarem o lazer de modo inteligente. Alguém que tenha trabalhado longas horas, por toda a vida, ficaria entediado se de repente ficasse ocioso. Essa mesma pessoa, se viveu quase sem lazer, privou-se de viver experiências inesquecíveis, de aprender com a vida etc. Não há mais razão para que grande parte da população sofra necessidades. Só mesmo um insano pode insistir no equívoco de trabalhar excessivamente, quando já não há mais necessidade disso.
“O que quero dizer”, esclarece o filósofo, “é que, com quatro horas de trabalho ao dia, qualquer pessoa está em condições de garantir o mínimo indispensável para gozar a vida, e que o restante do dia deve ser passado como ela bem entender.”
Com moderada racionalidade, a idéia é factível. Mas os abastados ficam estarrecidos. Habituados a se esfalfar no trabalho, mesmo depois de milionários, estão convencidos de que os trabalhadores não saberiam usar o lazer. E essa visão tem história. No século XIX, operários ingleses trabalhavam 15 horas por dia, e as crianças, 12 horas, em média. Quando sugeriram que tais jornadas eram excessivas, a resposta foi que o trabalho impedia os homens de se embriagarem, e as crianças, de caírem na marginalidade.
Nem mesmo quando todos puderem desfrutar dos prazeres e da alegria de viver haveria problemas de finanças. Os ex-donos do mundo resignar-se-iam a uma moderada perda; apenas a supressão da parcela correspondente à ganância em seus ganhos; nada, pois, que pudesse abalar seus impérios. E, com todos trabalhando suas quatro horas diárias, os mercados cresceriam como cogumelos. Também não se está propondo a equanimidade econômica. A maior parte da riqueza produzida iria para a minoria formada pelos ex-donos do mundo, na qual muita gente nunca trabalhou, nem mesmo quatro horas ao dia.
Todos os empregados e os desempregados - sem exceção - trabalhariam quatro horas por dia e ganhariam o suficiente para viver. Quatro horas de trabalho ao dia, nada mais, nada menos do que quatro, e o desemprego seria extirpado da face da terra. E todos reencontrariam o perdido tempo da contemplação, e recuperariam em sua plenitude a ameaçada humanidade.

IN: Sete pecados do capital / organização Emir Sader. Rio de Janeiro: Record, 2000 pg.121-160

* Escritor, dramaturgo, roteirista de cinema e televisão.
Autor de Nem mesmo todo o oceano, publicado pela Record
Material totalmente retirado deste site.

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