terça-feira, 7 de junho de 2011

Pecado capital do capitalismo: a exploração

EMIR SADER*

Explorar, no seu sentido mais geral, significa fazer uso de algo para um fim determinado, como quando se explora um recurso natural para benefício próprio. Por exemplo, quando se queima madeira para fazer fogo, se está explorando as florestas para cozinhar ou para se proteger do frio.
Se, porém, nos valemos da ação de outra pessoa para beneficio próprio, estamos explorando essa pessoa. Se essa pessoa é fraca, desvalida, não tem formas de resistência e de se submeter à nossa ação sobre ela, estamos fazendo algo moralmente condenável, estamos explorando um ser humano, estamos tratando-o como coisa, como instrumento de um fim nosso e não como pessoa. Como veremos, através da exploração estamos não somente tirando um benefício para nós mas também oprimindo outro ser humano, fazendo dele um objeto para nossa satisfação. Ele se torna uma espécie de árvore que queimamos para nos aquecer ou para suprir nossa fome.

Desde um certo momento da organização das sociedades humanas, passou a existir a exploração de uns homens por outros. Essa exploração se deu em geral através da utilização do trabalho alheio para obtenção de benefícios, através da exploração do trabalho de outro ou de outros para fins próprios, para acumulação de riquezas. A compreensão da exploração, de sua natureza, de suas formas de existência, requer, assim, o entendimento do que seja o trabalho humano, que tem sido a grande fonte de exploração nas relações dos homens entre si, de suas distintas formas de existência e do que seria uma sociedade sem exploração.

Exploração e trabalho humano
O homem se distingue dos outros animais por várias coisas: pela música, pela literatura, pela filosofia. Porém, antes de filosofar, compor ou escrever, os homens se diferenciam dos outros animais por sua capacidade de trabalho.
O que significa dizer que os homens trabalham? Significa que os homens são os únicos seres que produzem os seus meios de subsistência e, para fazê-lo, transformam o meio em que vivem. Os outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, sem plantar e depois colher. Assim, sua capacidade de modificação do meio em que vivem é pequena ou até mesmo nenhuma.
Por outro lado, os homens, ao buscar os meios para comer, para se proteger da intempérie, para se divertir, transformam o meio que os cerca. Plantam, trabalhando a terra, alterando-a. Constroem casas, pontes, veículos para deslocar-se. Assim, cada geração encontra um mundo diferente — não necessariamente melhor, mas sempre diferente — do que o de seus pais.
Invoca-se sempre o caso das abelhas ou das formigas, que sem dúvida, trabalham. O trabalho delas, porém, é instintivo, repetitivo. Tanto assim, que é o mesmo ao longo dos tempos. Praticamente nada muda no mundo dos outros animais que não tenha sido introduzido pelo homem, da comida enlatada para gato ao poste. De resto, de geração a geração, apenas com as mesmas lentas transformações biológicas do homem, a vida transcorre de forma praticamente similar para os outros animais, ao passo que cada geração de homem se depara com um mundo transformado — para melhor ou para pior — e vive situações sempre diferenciadas.
O trabalho é assim o que diferencia, antes de tudo, o homem dos animais. Sempre se pensa na abelha ou na formiga, exemplos de animais que inegavelmente trabalham. Por isso se diz que não têm história, têm uma reiteração biologicamente similar de geração a geração.
À diferença dos outros animais, os homens têm a capacidade de transformar racionalmente o mundo que os cerca, formular um projeto e traduzi-lo em realidade concreta, por exemplo, construindo uma ponte para cruzar um rio ou um despenhadeiro. O homem reflete sobre as condições que vai enfrentar, formula um projeto, materializa esse projeto numa realidade concreta e assim muda o meio em que vive, domina as condições naturais em que se encontra e transmite às gerações seguintes um mundo modificado pelo seu trabalho.
Por isso, ao ser aquele que transforma a natureza quando produz as condições de sua sobrevivência, o homem é o único ser que tem história, isto é, cujas condições de existência são transformadas por sua própria ação. O homem transforma a natureza quando nela in­veste para obter as condições para sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, é transformado por ela ou é trans­formado por seu próprio trabalho através das condições naturais sobre as quais age.
O trabalho é o ato através do qual o homem despende energia para transformar as condições que o cercam, com um fim determinado. A energia humana se traslada para um objeto material que é criado ou transformado através de ato de trabalho. Para que o trabalho seja possível, são necessárias a ação do homem e matérias-primas sobre as quais atuar, que podem ser a própria terra, no caso da agricultura, ou substâncias como, por exemplo, ferro, madeira ou couro. Além desses elementos, costuma haver instrumentos de trabalho, desde estiletes até máquinas complexas.
Esse ato de sobrevivência pode, ao mesmo tempo, ser um ato de emancipação, quando dirigido conscientemente para fins determinados, elaborados pelo intelecto e pela imaginação humanas como um ato de liberdade, de criação livre do homem. Ou pode ser um simples ato de sobrevivência, inconsciente, um meio para obter um fim imediato, que se reproduz de forma cotidiana, mecanicamente.
Para a grande maioria da humanidade o trabalho tem sido isso — um instrumento de luta pela sobrevivência, um meio e não um fim. O trabalho tornou-se meio de vida para a grande maioria e meio de acumulação de riqueza para uma minoria. Isto é, serve como forma de exploração da grande maioria da humanidade por aqueles que, ao possuírem capital, não necessitam trabalhar e podem viver do trabalho alheio. O trabalho se torna então fonte de sobrevivência precária para tantos e fonte de acumulação de riqueza para alguns.
Antes do capitalismo o trabalho já era fonte de exploração e de acumulação de riqueza de uns à custa de outros. Enquanto a sociedade tinha um nível muito elementar de desenvolvimento econômico, todos necessitavam trabalhar. As diferenças vinham apenas das formas de trabalho, da divisão do trabalho. Dentro das próprias famílias se estabeleciam diferenças de funções, em que o homem em geral se dedicava à busca de meios de sobrevivência, enquanto à mulher cabia o cuidado dos filhos, a cozinha e o arranjo da habitação. Era ainda uma divisão técnica do trabalho, em que cada um buscava fizer aquilo para o que tinha melhores propensões, mas já implicava em privilégios, porque propiciava ao homem maior contato com o mundo, experiências novas e menos repetitivas que o trabalho doméstico. Além disso, desenvolvia nele a força física e uma diversidade maior de habilidades, tornando-o mais apto para enfrentar situações novas e para o aperfeiçoamento técnico.
Quando o progresso material tornou possível que nem todos precisassem trabalhar, começaram a surgir algumas figuras novas na sociedade humana — a dos técnicos, a dos sacerdotes, a dos guerreiros, a dos governantes, a dos filósofos, a dos artistas —, isto é, gente que se destacava da produção direta, seja para planificá-la, seja para protegê-la militarmente ou para se dedicar à elaboração sobre o significado do que os homens faziam.
Introduzia-se a divisão entre trabalho material e trabalho intelectual, divisão chamada divisão social do trabalho, porque introduz privilégios claros, em que alguns ficam relegados à produção material, repetitiva, mecânica, enquanto outros se dedicam à direção da sociedade, concentrando assim poder sobre os outros.
Essas primeiras divisões em classes das sociedades humanas foram se consolidando e se tornando cada vez mais complexas, sempre tendo a exploração do trabalho como fundamento. Falar de divisão entre trabalho físico e trabalho intelectual é falar de trabalho que produz riquezas e de funções que organizam e usufruem a exploração do trabalho alheio. Os escravos na Grécia e na Roma antigas, como os servos da gleba na Idade Média, foram expressões mais claras das formas de subjugação e de dominação do trabalho humano por uma elite privilegiada. As riquezas sempre foram produzidas pelo trabalho humano, mas este foi concentrado nas camadas pobres da sociedade, sendo apropriado pelas minorias privilegiadas. A história da humanidade até aqui tem sido a história da exploração do trabalho da grande maioria por uma minoria.

Exploração e alienação
Reduzido à fonte de enriquecimento alheio, a meio de sobrevivência para a grande maioria, o trabalho humano tem sido até aqui um trabalho alienado. Alienação tem o sentido — em geral usado no direito — de entregar a outro o que é nosso. Assim, aliena-se um bem quando se vende a outro algo que é nosso. E no caso do trabalho, como se dá essa alienação?
No caso do trabalho, a alienação tem vários sentidos. No primeiro deles, o trabalhador produz algo que é apropriado pelo não-trabalhador — nas nossas sociedades, pelo capitalista —, que não lhe retribui a riqueza produzida por seu trabalho. É isso que propicia o enriquecimento em um pólo, minoritário, da sociedade —justamente aquele que não trabalha, no sentido da produção de riquezas — e o empobrecimento ou a manutenção em níveis mínimos de sobrevivência da grande maioria — justamente aquela responsável pela produção de todas as riquezas materiais existentes. Esta é a alienação econômica, aquela ligada diretamente à exploração do trabalho alheio, vinculada à transferência de riqueza daqueles que a criam para os que exploram esse trabalho através de distintas formas de capital — terra, fábricas, minas, transporte, comércio, serviços etc.
Esse mecanismo de exploração do trabalho — de não remuneração por parte do capitalista do valor criado pelo trabalhador é o que Marx chamou de “mais-valia”, o valor a mais, que alimenta a acumulação de riqueza por parte do capital. Um trabalhador, em condições médias de produção, está em condições de gerar incomparavelmente mais riqueza do que aquela necessária para remunerar o seu trabalho. Existe um tanto a mais de riqueza que ele produz e que não lhe é entregue, um excedente de mercadorias que ele gerou — por exemplo, ao transformar, durante sua jornada de trabalho, uma certa quantidade de pedaços de couro em um determinado número de pares de sapatos — e pelo qual ele não é remunerado.
Esse excedente de riqueza, esse excedente de valor produzido pelo trabalhador e que fica nas mãos do capitalista, o qual é denominado de mais-valia, é a alavanca do processo de reprodução do capital, aquela que produz a concentração cada vez maior de riqueza nas mãos dos capitalistas. É ela que permite que o funcionamento da economia redunde em concentração de riqueza no pólo capitalista e de pobreza ou de simples sobrevivência no pólo do trabalhador, na acumulação de capital em detrimento do produtor direto das riquezas. Esse é o processo de exploração do trabalho alheio, que torna o trabalho humano alienado, apropriado em grande parte das riquezas que produz por um outro — neste caso, o capitalista.
Nas sociedades anteriores ao capitalismo, essa exploração do trabalho se dava de maneira explícita. Assim, os escravos da antiguidade ou os servos da Idade Média eram considerados seres inferiores, que haviam nascido para cumprir tarefas materiais. Os primeiros eram propriedade de seus donos, viviam em função das necessidades deles, recebendo em troca apenas os elementos mínimos para sobreviver. Os servos da gleba — como a expressão mesma afirma — pertenciam à terra e esta, por sua vez, pertencia aos senhores feudais. Pela utilização da terra, os servos entregavam aos senhores uma parte da sua produção ou trabalhavam na terra dos senhores uma parte do tempo. Garantiam dessa maneira a sobrevivência dos senhores, ficando com uma parte mínima que lhes garantia as condições suficientes para sua sobrevivência.
No capitalismo, oficialmente, as pessoas são iguais diante da lei, não se tornando possíveis formas abertas de escravidão ou de servidão, mesmo se o tráfico de escravos e a exploração do trabalho escravo tenha sido parte integrante da acumulação de riquezas por parte de todas as potências capitalistas, como conhecemos no caso ao longo de quase quatro séculos.
Como é possível então a exploração da mão-de-obra em condições de igualdade jurídica? O trabalho humano é uma mercadoria como qualquer outra, comprada e vendida no mercado. Seu valor é definido pelo salário com o qual o trabalhador é remunerado. Assim, parece que existe uma troca igual: trabalho entregue ao capitalista contra salário. No entanto, como vimos anteriormente, o trabalhador só é remunerado por uma parte do que ele entrega ao capitalista. Dessa forma, a troca na realidade não representa valores iguais. O salário esconde os mecanismos de exploração da força de trabalho.
Um aumento de salário diminui as proporções da exploração, isto é, da quantidade de riqueza produzida pelo trabalhador e não remunerada pelo capitalista ou, como chamamos, de mais-valia. Ao aumentar os preços das mercadorias que os trabalhadores comprarão, os capitalistas transferem os maiores gastos com força de trabalho e recuperam as taxas de exploração, ao fazer os trabalhadores retornarem parte ou a totalidade da maior remuneração obtida, ao gastar uma parte maior de seus salários para comprar o indispensável para sua sobrevivência.
Num segundo sentido, o trabalho humano é alienado — aquele em que o trabalhador não decide o que vai produzir. Imperam nas unidades de produção as decisões do proprietário dos meios de produção — do dono da fábrica, dos técnicos, em suma, não dos responsáveis pela criação da riqueza, mas dos proprietários ou gestores dos instrumentos de produção. Tendo que vender sua força de trabalho para sobreviver, os trabalhadores se submetem às decisões dos que compram sua capacidade de trabalho.
Os trabalhadores não são donos de sua força de trabalho. Eles não decidem o que produzem, a que preço produzem, para quem produzem. Ao não possuir capital para produzir por conta própria, alienam sua força de trabalho também neste sentido.
Porém, ao valer-se de seu trabalho apenas para sobreviver, fazendo de seu poder de produção um meio de vida e não um instrumento para a transformação consciente do meio que o cerca, o trabalhador não tem consciência sequer de que ele é o produtor das riquezas da sociedade capitalista. A especialização da produção faz com que o trabalhador realize operações cada vez menores, sem sequer se dar conta do tipo de mercadoria que está produzindo. Atualmente há fábricas inteiras que se especializam em produzir apenas algumas peças de computadores, as menos sofisticadas tecnologicamente em países mais atrasados, com salários mais baixos, enquanto as partes mais complexas são produzidas em fábricas situadas em países capitalistas mais avançados, que requerem mão-de-obra mais especializada e mais bem remunerada.
Um trabalhador faz parte do processo de produção de um televisor, sem se dar conta disso. Sai à rua depois do trabalho, passa por uma loja que vende os televisores que ele contribuiu para produzir, mas não tem consciência desse vínculo. É como se o trabalhador não tivesse nada a ver com o produto do seu trabalho. Seu trabalho é alienado, desvinculado do que ele produz. Neste terceiro sentido também se pode falar de trabalho alienado.
Desta maneira, a exploração do trabalhador é possível pela existência da alienação, que impede sua consciência sobre o processo de trabalho, através do qual o trabalhador não é remunerado por uma parte substancial do valor que produz.

Exploração e capitalismo
O trabalho humano foi transformado pelo capitalismo numa mercadoria. Na forma de produção das mercadorias está contido o mecanismo de exploração.
Mercadoria é tudo o que é produzido para o mercado, isto é, não para o consumo individual, mas para a venda, para o consumo alheio. Se alguém produz algo para seu uso ou para dar de presente a alguém, esse algo é um produto, mas não uma mercadoria. Mas se ele trocar esse objeto por dinheiro ou por outro produto qualquer, esse objeto passa a ser uma mercadoria. A mercadoria é portanto algo produzido para o uso de outra pessoa, que a obtêm mediante a troca por dinheiro ou por outra mercadoria que, por sua vez, atende à sua necessidade.
Toda mercadoria tem assim duas funções: uma de uso e outra de troca. Em outras palavras, tem valor em dois sentidos — valor de uso e valor de troca. É valor de uso tudo o que satisfaz alguma necessidade humana —necessidade material ou espiritual, do corpo ou da mente. O valor de uso sempre existiu nos produtos do trabalho humano, seja para satisfazer necessidades de alimentação, de vestimenta ou de habitação, ou para atender a necessidades simbólicas.
Já o valor de troca, nem sempre existiu. Quando viviam em sociedades de baixo desenvolvimento econômico, os homens consumiam tudo o que produziam, sobrando pouco ou nada para trocar. Eram sociedades cujas economias viviam em função da sobrevivência, em que a produção não tinha como objetivo a troca ou a venda, e sim o consumo.
Quando a especialização tornou possível uma produção superior ao consumo, gerando um excedente em relação às necessidades da sociedade, a troca tornou-se um objetivo cada vez mais importante para a produção.
Os homens passaram a produzir tendo em vista crescentemente a venda, fazendo dos objetos de seu trabalho mercadorias, coisas produzidas para o consumo alheio, além daquela parte da produção destinada a satisfazer suas próprias necessidades.
No capitalismo, tudo passou a ser mercadoria. Com exceção daquilo a que temos acesso gratuitamente — o ar, a água das fontes naturais, as praias —, tudo o resto tem preço, é uma mercadoria. Mercadoria é algo que tem os dois tipos de valor — o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso de uma mercadoria é a utilidade que ela tem. No caso dos alimentos, sua utilidade vem de sua propriedade de matar nossa fome, assim como a utilidade de um instrumento de trabalho reside na sua capacidade de facilitar nossa atividade, multiplicar nosso potencial de produção ou economizar tempo de trabalho. O valor de troca é dado não diretamente pela utilidade de um objeto, mas pelas horas de trabalho necessárias para a sua produção.
Um objeto precisa ter os dois tipos de valor para ser uma mercadoria. É pela sua utilidade que eu me interesso em adquiri-la, mas o valor que devo pagar por ela está dado pelas suas condições de produção, pelo tempo necessário para produzi-la. Se um objeto não tem utilidade, eu preciso tratar de criá-la, mediante campanhas de publicidade, para que pessoas se interessem em comprá-la. É o caso de mercadorias que ficam na «moda», conforme a eficácia de campanhas publicitárias. A utilidade — o valor de uso — é assim o suporte do valor de troca, a condição do valor de troca, mas este termina sendo, no capitalismo, aquele que representa diretamente o valor que as mercadorias possuem.
Se no entanto um produtor vai vender suas mercadorias para, com o dinheiro obtido, comprar outras, que satisfaçam suas necessidades, que critério permite que se vendam e se comprem essas mercadorias? Em outras palavras, quanto vale uma enxada ou um quilo de tomate? O que faz com que, por exemplo, seja possível vendê-los e comprá-los pela mesma quantidade de dinheiro?
A utilidade de um objeto não é o que define seu valor. Objetos de enorme utilidade como o feijão ou remédios podem custar relativamente muito barato ou muito caro, enquanto outros, como adornos pessoais ou objetos de consumo sofisticado, podem ter um preço muito alto. Se o ouro tem um valor alto, é porque o custo de sua extração, o tempo de trabalho necessário para sua produção como mercadoria, é elevado.
A questão é saber o que contêm em comum dois objetos tão diferentes — em sua matéria-prima, na técnica de sua produção, nas necessidades que atende — para que seja possível estabelecer um critério para sua troca?
Deixadas de lado essas diferenças, constatamos que o único elemento comum entre duas mercadorias tão distintas do fato de que foram produzidas pelo trabalho humano. Mesmo assim, não pelo trabalho especifico, do artesão que produz a enxada e do camponês que produz tomates, mas pelo que eles têm de comum, isto é, o gasto de energia humana para transformar a natureza e produzir mercadorias novas.
Se duas mercadorias diferentes são trocadas ou vendidas e, com esse dinheiro, compradas outras mercadorias pelo valor, significa que elas contem a mesma quantidade de trabalho humano. Em outras palavras, se quisermos medi-las em termos de tempo, podemos dizer que elas foram produzidas no mesmo tempo de trabalho. Este cálculo é feito não por quem demora mais ou por quem demora menos, mas pela média do tempo necessário para produzir uma mercadoria, que determina seu valor, isto é, a referência pela qual se decide os termos de sua venda e compra.
A própria força de trabalho é uma mercadoria no capitalismo. Como se determina então seu valor?
Se, como vimos, o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho necessário para sua produção, como se determina esse tempo no caso da mercadoria força de trabalho? Quanto tempo de trabalho é necessário para produzir a força de trabalho? A resposta não é simples, porque a mercadoria força de trabalho não é produzida diretamente na fábrica, como as outras mercadorias. Ela não existe fora do corpo vivo do trabalhador. Quanto tempo de trabalho então é necessário para produzir os músculos e o cérebro do trabalhador, já que são essas propriedades que fazem com que a força de trabalho seja útil para o capital que deseja comprá-la?
Para que se produza e reproduza sua força de trabalho é necessário, antes de tudo, que os trabalhadores estejam vivos e continuem vivos, isto é, que se alimentem, durmam, se agasalhem, cuidem de sua saúde e se reproduzam. Sem isto não poderiam retornar no dia seguinte à fábrica, à fazenda ou a qualquer outro lugar onde vendem sua força de trabalho. Enquanto cresce, estuda e trabalha, o homem consome certa quantidade de mercadorias, que pode ser medida em tempo de trabalho. Ao medir este valor necessário para produzir e reproduzir a força de trabalho, estaremos medindo o seu valor como mercadoria.
Casa, comida, roupa, saúde, educação, lazer — esses custos básicos são o que se costuma denominar "mínimo indispensável para a subsistência", que deveria ser coberto pelo salário mínimo. Portanto, o valor da força de trabalho é igual ao valor dos meios de subsistência, principalmente gêneros de primeira necessidade, indispensáveis à reprodução dos trabalhadores.
Embora seja uma mercadoria, a força de trabalho é uma mercadoria especial, porque ela é a única mercadoria que produz mais valor. Toda mercadoria contém valor, que é o tempo de trabalho consumido para produzi-la. Mas a força de trabalho, além de conter valor, gera um valor a mais, tanto para sua própria remuneração, quanto à mais-valia, que fica com o capitalista.
Como produz valor, a força de trabalho é remunerada conforme sua capacidade de produzir valor. Assim, uma força de trabalho qualificada vale mais, na medida em que sua produção requereu mais anos de estudo, do que uma não qualificada. Assim, seu salário mais alto reflete o maior tempo necessário para a sua produção como força de trabalho especializada.
Como nas sociedades capitalistas, em geral, existe uma oferta de mão-de-obra maior do que os empregos existentes, os trabalhadores terminam trabalhando por salários abaixo do mínimo necessário. Este, calculado pelos institutos de pesquisa, no caso do Brasil, deveria ser cerca de cinco vezes maior do que o salário mínimo vigente, para poder atender as necessidades mínimas do trabalhador e da sua família. O salário mínimo, neste caso, está abaixo do valor do necessário para a sobrevivência do trabalhador. Além da exploração escondida pelo salário — a mais-valia —, existe então um outro montante ainda em que o trabalhador é explorado nestas condições, o que faz com que se dê uma super-exploração do trabalho.

Uma sociedade sem exploração
A sociedade capitalista repousa sobre a exploração do trabalho. Ë a mais-valia, o valor criado pelo trabalhador e não remunerado, que alimenta a acumulação de capital.
Mas o que poderia ser uma sociedade sem exploração?
Uma sociedade sem exploração é, antes de tudo, uma sociedade do trabalho, uma sociedade em que to­dos tenham garantido o direito ao trabalho, vivam do seu trabalho. Isto significa que, de alguma forma, todos se tornem trabalhadores e ninguém viva da exploração do trabalho alheio.
Uma sociedade desse tipo elimina a exploração, fazendo com que ninguém possa viver do trabalho dos outros. Significa que ninguém disponha do privilégio de possuir capital, negado à grande maioria.
Assim, as máquinas, instalações, matérias-primas — isto é, os meios de produção — não poderiam ser ­propriedade privada, mas propriedade democrática do conjunto da sociedade.
Uma sociedade desse tipo se choca frontalmente com o capitalismo, que se apóia estruturalmente na propriedade privada dos meios de produção, o que significa a separação entre capital e trabalho. Esta separação implica em que a minoria tenha acesso a capital — sob qualquer forma de dinheiro ou de empresas, industriais, agrárias, comerciais ou de outro tipo —, e a grande maioria, dispondo apenas de seus braços para sobreviver, seja obrigada a submeter-se à exploração do capital.
Esse tipo de sociedade tem o nome de socialismo, baseando-se na socialização dos meios de produção, na decisão coletiva, tomada democraticamente, a respeito do que produzir, quanto produzir, por que preço produzir, para quem produzir. Numa sociedade desse tipo elimina-se não apenas a exploração, como a alienação, fazendo-se do trabalho humano não um instrumento de sobrevivência, mas de liberdade e de emancipação.

Sader, Emir (org.) – 7 pecados do capital
Editora Record, 1999 – pg. 57-77
Integralmente copiado deste site.


* Emir Sader é professor de Sociologia da USP e da UERJ. Escreveu, entre outros, os livros Estado e política em Marx, A transição no Brasil, Que Brasil é este?, O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil e O poder, cadê o poder?

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